Conheci Gui Mohallem por causa do ensaio que escrevi para a revista Serrote, em parceria com Heloísa Lupinacci, sobre Coney Island. E logo percebemos uma grande afinidade de impressões sobre o lugar, e mais, sobre o lugar daquele lugar no mundo de hoje. Coney obsessionava Gui já a algum tempo, e ele dedicava boa parte de suas estadias em Nova York a percorrer o cenário desolado daquela praia ao sul, situada na entrada da baía de Gravesend, em plena foz do rio Hudson.

As três séries de fotos feita por ele em Coney datam de 2009 e 2010, e retratam a solidão de um lugar eternamente à espera de algo, uma latência. Paisagens vazias, nas quais uma ou duas pessoas miram qualquer coisa distante, dormem sobre o banco, ou olham enigmaticamente para o chão, como que a procurar algo perdido – mais perdido no tempo, me parece, do que na areia da praia. Essas figuras solitárias de hoje parecem o reverso espectral das multidões que tanto já se aglomeraram ali, tornando a praia de Coney Island o lugar de maior densidade demográfica do mundo no final do século XIX e início do XX.

Em Coney Island, o ambiente rarefeito se choca com a densidade histórica, dando ao lugar uma característica ímpar, chave de sua estranheza. Sede dos primeiros “paraísos artificiais” de massa – os parques de diversão e os freak shows –, a ilha se tornou, no imaginário americano, a pátria dos desajustados, imagem que se reforçou com a cruel decadência do lugar ao longo do século XX. E, por isso, foi cantada por figuras como Lou Reed e Tom Waits, fotografada por Walker Evans, Weegee, Robert Frank e Nan Goldin, e ainda reapararece como cenário de fundo na foto de Patti Smith com Robert Mapplethorpe, na capa do livro autobiográfico da cantora em sua edição brasileira (Só garotos).

Em suas fotos, montadas como dípticos, Mohallem não está preso às malhas do real. Usando câmeras mecânicas, ele revela, amplia, e depois digitaliza as fotos, alterando cores e eventualmente redesenhando partes da imagem. Sua paleta cromática tende fortemente para os verdes e azuis, esfriando as cenas. Dá-se, assim, uma espécie de amortecimento sensível da nossa relação com o lugar, que em suas fotos parece ainda mais distante, e um tanto irreal. O que está em causa, poeticamente, é a dificuldade de aproximação, e, com ela, a dificuldade de apreensão de um lugar que, em vários sentidos, parece estar em eterna suspensão. Colaboram muito para isso as fortes manchas que desenham as fotos, e que parecem materializações da ventania, da areia e da maresia, como um tufão também rarefeito, que não chega a se formar.

Fiquei feliz de ver o quanto dessa densidade poética se prolonga no trabalho mais recente do fotógrafo (Welcome home), sem, no entanto, ser uma mera repetição. Pois se ali essa paleta de cores se mantém, assim como a técnica de manipulação, a distância se torna proximidade, e a paisagem fotografada por Mohallem sai da hibernação e vai para o desejo. Em ambos os casos, com efeito, parece haver um sentido mágico inscrito nos lugares, e que está prestes a nos dar acesso a outro plano de realidade, mais onírico. Eu, que já havia entrevisto (sem ver) aquele tufão rarefeito de Coney Island, me senti agradavelmente em casa quando vi as suas fotos. Welcome home.

Guilherme Wisnik